sábado, 22 de julho de 2017

Os primeiros autores que escreveram a história da Fazenda de Santa Cruz

Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 104:1-170, 1984.

Uma das primeiras obras de que se tem notícia sobre Santa Cruz é o texto intitulado 'Memórias de Santa Cruz' de autoria de Manoel Martins do Couto Reis. 

Sobre ele, é importante ler o que diz o professor Sinvaldo do Nascimento Souza, um dos principais pesquisadores da história de Santa Cruz, "Em 1983 o NOPH publicou as "Memórias de Santa Cruz", escritas em 1804 pelo então superintendente da Real Fazenda de Santa Cruz, Manoel Martins do Couto Reis, a partir do original que se encontra na Biblioteca Nacional. No entanto, "as memórias" escritas em 1804 não eram a primeira versão daquele documento. A primeira vez que o Coronel do Couto Reis escreveu as 'memórias de Santa Cruz' foi em 1799, conforme se pode verificar na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 65, tomo 2, páginas 301 a 321". Ainda sobre Couto Reis, é importante ler também o que diz Alberto Moby, outro importante historiador santa-cruzense. Embora falem basicamente das mesmas coisas, as duas versões das 'memórias' são diferentes em seus objetivos: a versão de 1799 é mais descritiva e preocupada em relatar o que foi a fazenda desde a administração dos jesuítas e os projetos traçados pelo Coronel para o futuro, a de 1804 é mais uma série de reclamações contra uma certa ingenuidade da Coroa, segundo ele, ao tratar as questões da fazenda e contra as intrigas que se faziam na Corte contra a sua administração. Quais teriam sido os motivos que levaram Couto Reis a chegar a tais conclusões? Teriam fundamento as suas reclamações? Que transformações ocorreram em Santa Cruz nos 5 anos que separam as duas versões? 

Na primeira parte das 'memórias', em ambas as versões, as ideias principais seguem as mesmas linhas. O Coronel Couto Reis inicia as 'memórias' por uma descrição geográfica detalhada da então Real Fazenda de Santa Cruz: descreve a sua beleza como 'uma bella porção de terra dignamente estimada pela melhor ou por uma das situações mais admiráveis e circunvizinhas do Rio de Janeiro' na primeira versão, fórmula que simplifica, na versão de 1804, para a porção mais bella dos territórios do Rio de Janeiro. Descreve suas terras, sua fertilidade, a proximidade com o porto de Sepetiba e, apenas na versão de 1804, acrescenta uma nota sobre as dificuldades de transporte dos produtos, assinalando que, no governo do Vice-Rei D. Luís de Vasconcellos e Souza (1779-1790), se começou a construir uma estrada em condições de escoar a produção da fazenda para a província, que foi, no entanto, interrompida, com a saída de D. Luís do governo. 

Já neste início se pode observar, nas duas redações das 'memórias', o interesse de Couto Reis em convencer a Coroa da viabilidade da Fazenda de Santa Cruz, bastando, para isso, que se desse a ela os recursos necessários ao seu desenvolvimento. Mesmo antes de Manoel Martins do Couto Reis assumir como superintendente já se pensava em vendê-Ia devido à franca decadência, causada segundo o Coronel, por uma série de administrações incompetentes no período que ia da expulsão dos jesuítas (1760) até a sua chegada a Santa Cruz. Coincidem ainda, as duas versões quanto à engenhosidade e perseverança do trabalho dos jesuítas, primeiros proprietários da fazenda, no que diz respeito ao aproveitamento das terras à sua engenharia na proteção contra as cheias anuais do rio Guandu e o trato com os escravos. Segundo o historiador e engenheiro José Saldanha da Gama, também superintendente de Santa Cruz, num período posterior ao de Couto Reis, para o escoamento das águas do Guandu, os jesuítas teriam construído um canal medindo 10,859 Km. O melhor exemplo da habilidade e engenhosidade do trabalho jesuítico em Santa Cruz talvez seja, ainda hoje, a Ponte dos Jesuítas, recentemente restaurada graças ao esforço e tenacidade do NOPH. Embora, a partir daí, a redação das duas versões das “memórias” comece a se distanciar, o Coronel Couto Reis continua, em ambas as versões, a defender o trabalho dos jesuítas, marcado especialmente pelo trato com os escravos. Couto Reis relaciona a prosperidade da fazenda nos tempos jesuíticos à "propagação, boa educação, e conservação dos escravos aos dictames de uma doutrina sólida, e amável obediência", à conservação dos campos para o cultivo e como pasto para o gado, à conservação dos canais e do dique e o cuidado com relação ao gado bovino, que era o principal produto da economia de Santa Cruz na época jesuítica.

Em seguida Couto Reis traça um quadro da decadência da fazenda que, segundo ele, tem origem nas administrações que, ao substituírem os jesuítas, expulsos do Brasil, levaram 'mil desordens e abusos, devorando todo o bom sistema'. Ao que parece, a preocupação de Couto Reis em eximir de culpa a administração dos padres da Companhia de Jesus e relacioná-la às administrações posteriores, está ligada ao interesse da Coroa em se desfazer da fazenda. O Estado português estava em crise, já não figurando entre as primeiras potências europeias, resultado da passagem da fase mercantilista para a fase capitalista, que Portugal não foi capaz de acompanhar. Sendo assim, entre investir na fazenda para obter lucro a médio ou a longo prazos e vendê-la para obter lucro a curto prazo, a tendência era pela segunda opção. 

O Coronel Couto Reis era ferrenho defensor da manutenção da fazenda como propriedade da Coroa, o que significaria, em última análise, a sua própria manutenção enquanto superior de Santa Cruz. Várias vezes Couto Reis se declara admirador incondicional do  método jesuítico e disposto a aplicá-lo novamente, certo de que o estilo de administração dos jesuítas era o único capaz de reerguer a economia da fazenda. Baseado nisto o Coronel, na redação de 1799, propõe a Coroa um plano para reerguer a fazenda, desde que lhe sejam dados recursos financeiros: a construção de currais para abrigar o gado perdido pelas imensas pastagens de Santa Cruz e que pretendia recuperar; a reeducação dos escravos nos moldes jesuíticos; a construção de dois engenhos, um em Itaguaí e outro em Piai, naquela época já iniciada; plantar mandioca, arroz, feijão, milho, algodão e café, a construção de uma serraria; o restabelecimento do cuidado com os campos e rios, etc. No entanto, entre 1799 e 1804 uma serie de medidas foram sendo tomadas pela Coroa, visando a lenta e gradual desativação da fazenda como um todo. A medida da qual Couto Reis mais se tenha ressentido foi a autorização da venda dos dois engenhos pela Carta Régia de 7 de novembro de 1803. Para ele o principal culpado por esta medida teria sido D. Luís Beltrão de Gouveia de Almeida, então chanceler da Coroa, que era o principal defensor da venda da Fazenda de Santa Cruz em lotes, já que era praticamente impossível que alguém tivesse capital suficiente para compra-la inteira, devido a sua grande extensão. Por isso, na versão de 1804, o Coronel Couto Reis acusa Luís Beltrão de, "fingindo-se de zeloso do bem público, e das arrecadações da Fazenda Real e arrancar da mãos dos Vice-Reis todo o poder". Preocupado em acusar Luís Beltrão, por um lado, e de fazer a defesa da sua própria, por outro, o Coronel Couto Reis não foi capaz de fazer uma consideração crítica sobre as opiniões de seus opositores e de seus argumentos. A crise do antigo sistema colonial já não permitia a Portugal perder tempo com investimentos a médio e a longo prazo, o que Couto Reis não pôde ou não quis perceber. Certamente ainda há muito que pesquisar sobre esse período da história do Brasil, o que seria, sem dúvida, uma contribuição importante para a historiografia sobre o fim do sistema colonial. As duas versões das "memórias" do Coronel Couto Reis são dois documentos obrigatórios para quem quiser fazê-lo. 

Segundo o Professor Sinvaldo, "Além das obras já citadas é importante destacar também 'Reparos sobre a atual decadência da Real Fazenda de Santa Cruz' texto ainda inédito, escrito em 1816. Outra obra conhecida de Couto Reis foi por ele intitulada 'Informações acerca dos brejos de São João Grande e de São João Pequeno da Real Fazenda de Santa Cruz'. As cópias pertenciam ao antigo Arquivo Militar, uma com 3 folhas e a outra com 5 páginas, bem como algumas cartas topográficas inéditas do próprio Couto Reis. Além disso existem inúmeras cartas escritas pelo autor em questão, sobre assuntos variados como por exemplo ao Marquês de Aguiar, 'Acerca da necessidade de se estabelecer cartas geográficas bem calculadas em todas as capitanias do Brasil, em que se indiquem individualmente as suas partes centrais' cujo original se encontra na Biblioteca Nacional. Cartas diversas ao Conde de Rezende; a S. M. Rainha de Portugal; a José Bonifácio de Andrada e Silva; 'Notícias de Santa Cruz'; 'Exposição sobre os problemas que lhe trazia a notícia da venda da Fazenda de Santa Cruz', 'Plano para uma melhor exploração da Real Fazenda de Santa Cruz'; 'Ofícios ao Desembargador Manoel C. S. Gusmão', etc. Todos manuscritos inéditos existentes no Arquivo Nacional. Podemos verificar, apenas citando algumas das obras inéditas de Manuel Martins do Couto Reis, que se trata de um autor cuja bibliografia vem requerendo outras pesquisas para que se possa melhor dimensionar, não apenas a história de um administrador, de um militar brasileiro bem sucedido, mas de toda a nossa sociedade; da problemática quanto ao relacionamento interpessoal então existente; das forças contrárias àqueles que buscavam melhores soluções para a "nossa" economia e também a história no seu aspecto regional e nacional, numa época em que a Nação brasileira ainda não havia sido consolidada".


 
José de Saldanha da Gama
Imagem do Boletim NOPH-23 pág. 5, outubro/1985. 

Também vamos encontrar outras referências escritas a respeito do nome do bairro na obra rara intitulada "História da Imperial Fazenda de Santa Cruz", de autoria de José de Saldanha da Gama, publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no tomo 38 da sua Revista, do quarto trimestre de 1860. Saldanha da Gama, que foi um dos superintendentes da fazenda, lembra que os jesuítas colocaram uma grande cruz de madeira, pintada de preto, encaixada em uma base de pedra sustentada por um pilar de granito. Mais tarde, já durante o império, o cruzeiro seria substituído por outro de dimensões menores. Atualmente existe uma cruz no mesmo local, mas não é mais o antigo cruzeiro histórico, e sim uma réplica que foi colocada em frente ao prédio do atual Batalhão Escola de Engenharia Villagran Cabrita, durante o comando do então Coronel Carlos Patrício Freitas Pereira, neste local funcionou a antiga sede da Fazenda de Santa Cruz. O cruzeiro deu nome à Santa Cruz, e em volta dele festejava-se, no mês de maio de cada ano, o "Dia da Sagração de Santa Cruz", com a participação da população local, inclusive dos escravos. A festa possuía o seu lado sagrado e o seu lado profano. Havia missas, bênçãos, ladainhas, reza do terço e procissão. À noite, no grande terreno em frente à igreja dos padres jesuítas, era a vez dos escravos se divertirem. Como não havia luz elétrica naquela época, eles usavam lampiões e centenas de archotes espalhados em toda a área. Ali cantavam e dançavam, comemorando a festa religiosa do dia.

Segundo o autor, Santa Cruz começou a ser povoada em meados do século XVI. Suas terras faziam parte da antiga sesmaria de Guaratiba, que foi desmembrada em nome de Martim Afonso de Souza, no dia 16 de janeiro de 1567, para contemplar Cristóvão Monteiro, que se fazia merecedor das terras por ter ajudado na fundação da cidade do Rio de Janeiro, combatendo contra índios e franceses. Cristóvão Monteiro, que mais tarde seria ouvidor-mor da Câmara do Rio de Janeiro, instala-se na região como o primeiro proprietário português das terras que se tornariam a Fazenda de Santa Cruz. Logo mandou construir um engenho e uma capela no local conhecido como "Curral Falso".

Com a morte de Monteiro as terras são herdadas por dona Marquesa Ferreira, sua viúva e por Catarina Monteiro, sua filha. Em dezembro de 1589, a parte que coube à dona Marquesa passa a pertencer aos jesuítas mediante doação, como esmola aos padres de Santo Inácio, com um pedido especial de intercessão pelas almas do finado Cristóvão e da própria dona Marquesa. No ano seguinte, 1590, os padres conseguiram obter a parte de Catarina Monteiro, trocando por outras propriedades em Bertioga, no caminho de São Vicente, São Paulo. Este foi o início do povoamento de Santa Cruz, que começou com Cristóvão Monteiro e foi se consolidando com a efetiva ocupação do território pelos padres jesuítas, que expandiram a área da sesmaria adquirindo terras vizinhas até alcançar dez léguas quadradas. A fazenda ia de Sepetiba até Vassouras, alcançando também o atual Município de Itaguai.

Em 1860, conforme foi dito anteriormente, José de Saldanha da Gama, que se destacaria como um dos superintendentes da Fazenda de Santa Cruz e membro atuante do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, escreveu a história daquela que foi um dos maiores latifúndios do país e que irá servir de inspiração para todos aqueles que forem escrever sobre a história do lugar, conforme ele mesmo diz em sua obra:

“Com a experiência colhida nos dois anos e nove meses em que exercemos o cargo de superintendente da Fazenda de Santa Cruz, julgamo-nos habilitados para reunir aqui os melhores elementos que mais tarde servirão até para uma história desenvolvida; o que por certo não será despido de interesse no grêmio desta sociedade a que temos a honra de pertencer”.

Dizer em que consistiu a primitiva grandeza da Fazenda de Santa Cruz, e qual foi a sua origem; rememorar em um quadro, senão completo, ao menos exato, os principais fatos que se passaram em mais de um século, acompanhados de documentos antigos do mais subido valor para a história; descrever tudo quanto pesquisamos, ou seja na natureza, ou seja nos numerosos escritos compulsados nas horas silenciosas de Santa Cruz, tal é o pensamento cardeal destas páginas que nos foram inspiradas, não pelo turbilhão e burburinho das festividades, mas pelos momentos poéticos e por assim dizer eloquentes da vida de um solitário. Podemos perceber que esta história irá abranger um período de mais de cem anos e terá como ponto de partida as circunstâncias que levaram ao estabelecimento dos padres jesuítas em Santa Cruz, o tratamento dado aos escravos da fazenda, a criação de gado, etc.

Os principais aspectos que podemos destacar nesses dois trabalhos são as datas de publicação bastante antigas, a importância dos seus autores e o valor que eles atribuem a Santa Cruz como um elemento integrador com a cidade do Rio de Janeiro, prevendo em alguns casos, um futuro grandioso para a fazenda.

Percebemos que, a história de Santa Cruz nos apresenta uma rica trajetória e um imenso quadro historiográfico. O número de trabalhos escritos sobre a região é bastante expressivo. Mais de 60% da produção escrita é constituída de livros e artigos de jornais, cujo potencial explicativo é bastante satisfatório. Na maioria das vezes compõem-se de antigos registros e os mais bem elaborados apresentam um bom nível de questionamento.

São trabalhos que propõem uma ampla visão, objetivando traçar um quadro geral da história da Fazenda de Santa Cruz e o seu relacionamento com a cidade. Constituem-se em material de excelente qualidade e os mais recentes são baseados numa farta pesquisa documental.

Apresentam-se como importantes instrumentos do conhecimento histórico e da realidade local, com profundo grau explicativo, grande interesse pelo questionamento socioeconômico, e ainda pela articulação com os níveis local, regional e nacional. Tais estudos influenciaram de maneira fundamental a produção historiográfica atual e serviram de base às sínteses históricas que formam as publicações oficiais e os poucos trabalhos didáticos existentes, além de pesquisas escolares.

De qualquer forma esta herança historiográfica deve ser valorizada e reexaminada, pois, a homogeneidade com que apresenta as características acima mencionadas demonstra o grau de consciência histórica que a comunidade possui, principalmente naqueles indivíduos oriundos das famílias tradicionais e mais cultas do lugar. Por outro lado, mesmo que alguns desses trabalhos possam ser considerados de pouca importância, muitos deles apontam caminhos fundamentais para o conhecimento histórico. 

1. Sobre a bibliografia de Cauto Reis ver o NOPH-27, de fevereiro de 1986, p. 17: "Couto Reis, apontamentos para sua biografia", artigo escrito pelo professor Sinvaldo do Nascimento Souza.
 2.    Ver o artigo "Ponte dos jesuítas é entregue em clima de testa", NOPH-26, janeiro de 1986, página 9. Também escrito pelo eminente professor.

2 comentários:

  1. Caro Professor Adinalzir,

    O meu nome é José da Marta e estou a escrever esta mensagem na tentativa de conseguir o seguinte:
    Sou um investigador amador com obra publicada, no entanto deparei-me com a dificuldade de encontrar uma versão on-line da obra do Benedicto Freitas sobre a Fazenda de Santa Cruz, nomeadamente o Vol II.
    Pode ajudar-me?

    Cumprimentos,
    José da Marta

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  2. Prezado José da Marta

    Agradeço o seu comentário e seu interesse pela obra do escritor Benedicto de Freitas. Pelo que sei não existe uma versão online da obra do autor. Seus livros são considerados raros e só encontrados em livrarias online especializadas e a preços muito altos. Mas posso te indicar um local onde você ainda poderá encontrar alguns exemplares da sua obra a preços populares. Acesse os links:
    https://www.facebook.com/advogadatatianasantos
    Espero ter ajudado. Com os votos de um Feliz Natal.
    Abraços!

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