Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 104:1-170, 1984. |
Uma das primeiras obras de
que se tem notícia sobre Santa Cruz é o texto intitulado 'Memórias de Santa
Cruz' de autoria de Manoel Martins do Couto Reis.
Sobre ele, é importante ler o
que diz o professor Sinvaldo do Nascimento Souza, um dos principais
pesquisadores da história de Santa Cruz, "Em 1983 o NOPH publicou as
"Memórias de Santa Cruz", escritas em 1804 pelo então superintendente
da Real Fazenda de Santa Cruz, Manoel Martins do Couto Reis, a partir do original
que se encontra na Biblioteca Nacional. No entanto, "as memórias"
escritas em 1804 não eram a primeira versão daquele documento. A primeira vez
que o Coronel do Couto Reis escreveu as 'memórias de Santa Cruz' foi em 1799,
conforme se pode verificar na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, nº 65, tomo 2, páginas 301 a 321". Ainda sobre Couto Reis, é
importante ler também o que diz Alberto Moby, outro importante historiador
santa-cruzense. Embora falem basicamente das mesmas coisas, as duas versões das
'memórias' são diferentes em seus objetivos: a versão de 1799 é mais descritiva
e preocupada em relatar o que foi a fazenda desde a administração dos jesuítas
e os projetos traçados pelo Coronel para o futuro, a de 1804 é mais uma série de
reclamações contra uma certa ingenuidade da Coroa, segundo ele, ao tratar as
questões da fazenda e contra as intrigas que se faziam na Corte contra a sua
administração. Quais teriam sido os motivos que levaram Couto Reis a chegar a
tais conclusões? Teriam fundamento as suas reclamações? Que transformações
ocorreram em Santa Cruz nos 5 anos que separam as duas versões?
Na primeira
parte das 'memórias', em ambas as versões, as ideias principais seguem as
mesmas linhas. O Coronel Couto Reis inicia as 'memórias' por uma descrição
geográfica detalhada da então Real Fazenda de Santa Cruz: descreve a sua beleza
como 'uma bella porção de terra dignamente estimada pela melhor ou por uma das
situações mais admiráveis e circunvizinhas do Rio de Janeiro' na primeira versão,
fórmula que simplifica, na versão de 1804, para a porção mais bella dos
territórios do Rio de Janeiro. Descreve suas terras, sua
fertilidade, a proximidade com o porto de Sepetiba e, apenas na versão de 1804,
acrescenta uma nota sobre as dificuldades de transporte dos produtos,
assinalando que, no governo do Vice-Rei D. Luís de Vasconcellos e Souza
(1779-1790), se começou a construir uma estrada em condições de escoar a
produção da fazenda para a província, que foi, no entanto, interrompida, com a saída
de D. Luís do governo.
Já neste início se pode observar, nas duas redações das
'memórias', o interesse de Couto Reis em convencer a Coroa da viabilidade da
Fazenda de Santa Cruz, bastando, para isso, que se desse a ela os recursos
necessários ao seu desenvolvimento. Mesmo antes de Manoel Martins do Couto Reis
assumir como superintendente já se pensava em vendê-Ia devido à franca
decadência, causada segundo o Coronel, por uma série de administrações
incompetentes no período que ia da expulsão dos jesuítas (1760) até a sua
chegada a Santa Cruz. Coincidem ainda, as duas versões quanto à engenhosidade e
perseverança do trabalho dos jesuítas, primeiros proprietários da fazenda, no
que diz respeito ao aproveitamento das terras à sua engenharia na proteção contra
as cheias anuais do rio Guandu e o trato com os escravos. Segundo o historiador
e engenheiro José Saldanha da Gama, também superintendente de Santa Cruz, num
período posterior ao de Couto Reis, para o escoamento das águas do Guandu, os
jesuítas teriam construído um canal medindo 10,859 Km. O melhor exemplo da
habilidade e engenhosidade do trabalho jesuítico em Santa Cruz talvez seja,
ainda hoje, a Ponte dos Jesuítas, recentemente restaurada graças ao esforço e
tenacidade do NOPH. Embora, a partir daí, a redação das duas versões das
“memórias” comece a se distanciar, o Coronel Couto Reis continua, em ambas as
versões, a defender o trabalho dos jesuítas, marcado especialmente pelo trato
com os escravos. Couto Reis relaciona a prosperidade da fazenda nos tempos
jesuíticos à "propagação, boa educação, e conservação dos escravos aos
dictames de uma doutrina sólida, e amável obediência", à conservação dos
campos para o cultivo e como pasto para o gado, à conservação dos canais e do
dique e o cuidado com relação ao gado bovino, que era o principal produto da
economia de Santa Cruz na época jesuítica.
Em seguida Couto Reis
traça um quadro da decadência da fazenda que, segundo ele, tem origem nas
administrações que, ao substituírem os jesuítas, expulsos do Brasil, levaram
'mil desordens e abusos, devorando todo o bom sistema'. Ao que parece, a
preocupação de Couto Reis em eximir de culpa a administração dos padres da
Companhia de Jesus e relacioná-la às administrações posteriores, está ligada ao
interesse da Coroa em se desfazer da fazenda. O Estado português estava em
crise, já não figurando entre as primeiras potências europeias, resultado da
passagem da fase mercantilista para a fase capitalista, que Portugal não foi
capaz de acompanhar. Sendo assim, entre investir na fazenda para obter lucro a
médio ou a longo prazos e vendê-la para obter lucro a curto prazo, a tendência
era pela segunda opção.
O Coronel Couto Reis era
ferrenho defensor da manutenção da fazenda como propriedade da Coroa, o que
significaria, em última análise, a sua própria manutenção enquanto superior de
Santa Cruz. Várias vezes Couto Reis se declara admirador incondicional do
método jesuítico e disposto a aplicá-lo novamente, certo de que o estilo de
administração dos jesuítas era o único capaz de reerguer a economia da fazenda.
Baseado nisto o Coronel, na redação de 1799, propõe a Coroa um plano para
reerguer a fazenda, desde que lhe sejam dados recursos financeiros: a
construção de currais para abrigar o gado perdido pelas imensas pastagens de
Santa Cruz e que pretendia recuperar; a reeducação dos escravos nos moldes
jesuíticos; a construção de dois engenhos, um em Itaguaí e outro em Piai,
naquela época já iniciada; plantar mandioca, arroz, feijão, milho, algodão e
café, a construção de uma serraria; o restabelecimento do cuidado com os campos
e rios, etc. No entanto, entre 1799 e 1804 uma serie de medidas foram sendo
tomadas pela Coroa, visando a lenta e gradual desativação da fazenda como um
todo. A medida da qual Couto Reis mais se tenha ressentido foi a autorização da
venda dos dois engenhos pela Carta Régia de 7 de novembro de 1803. Para ele o
principal culpado por esta medida teria sido D. Luís Beltrão de Gouveia de
Almeida, então chanceler da Coroa, que era o principal defensor da venda da
Fazenda de Santa Cruz em lotes, já que era praticamente impossível que alguém
tivesse capital suficiente para compra-la inteira, devido a sua grande
extensão. Por isso, na versão de 1804, o Coronel Couto Reis acusa Luís Beltrão
de, "fingindo-se de zeloso do bem público, e das arrecadações da Fazenda
Real e arrancar da mãos dos Vice-Reis todo o poder". Preocupado em acusar
Luís Beltrão, por um lado, e de fazer a defesa da sua própria, por outro, o
Coronel Couto Reis não foi capaz de fazer uma consideração crítica sobre as
opiniões de seus opositores e de seus argumentos. A crise do antigo sistema
colonial já não permitia a Portugal perder tempo com investimentos a médio e a
longo prazo, o que Couto Reis não pôde ou não quis perceber. Certamente ainda
há muito que pesquisar sobre esse período da história do Brasil, o que seria,
sem dúvida, uma contribuição importante para a historiografia sobre o fim do
sistema colonial. As duas versões das "memórias" do Coronel Couto
Reis são dois documentos obrigatórios para quem quiser fazê-lo.
Segundo o Professor
Sinvaldo, "Além das obras já citadas é importante destacar também 'Reparos
sobre a atual decadência da Real Fazenda de Santa Cruz' texto ainda inédito,
escrito em 1816. Outra obra conhecida de Couto Reis foi por ele intitulada
'Informações acerca dos brejos de São João Grande e de São João Pequeno da Real
Fazenda de Santa Cruz'. As cópias pertenciam ao antigo Arquivo Militar, uma com
3 folhas e a outra com 5 páginas, bem como algumas cartas topográficas inéditas
do próprio Couto Reis. Além disso existem inúmeras cartas escritas pelo autor
em questão, sobre assuntos variados como por exemplo ao Marquês de Aguiar,
'Acerca da necessidade de se estabelecer cartas geográficas bem calculadas em
todas as capitanias do Brasil, em que se indiquem individualmente as suas
partes centrais' cujo original se encontra na Biblioteca Nacional. Cartas
diversas ao Conde de Rezende; a S. M. Rainha de Portugal; a José Bonifácio de
Andrada e Silva; 'Notícias de Santa Cruz'; 'Exposição sobre os problemas que
lhe trazia a notícia da venda da Fazenda de Santa Cruz', 'Plano para uma melhor
exploração da Real Fazenda de Santa Cruz'; 'Ofícios ao Desembargador Manoel C.
S. Gusmão', etc. Todos manuscritos inéditos existentes no Arquivo Nacional. Podemos
verificar, apenas citando algumas das obras inéditas de Manuel Martins do Couto
Reis, que se trata de um autor cuja bibliografia vem requerendo outras
pesquisas para que se possa melhor dimensionar, não apenas a história de um
administrador, de um militar brasileiro bem sucedido, mas de toda a nossa
sociedade; da problemática quanto ao relacionamento interpessoal então
existente; das forças contrárias àqueles que buscavam melhores soluções para a
"nossa" economia e também a história no seu aspecto regional e
nacional, numa época em que a Nação brasileira ainda não havia sido
consolidada".
José de Saldanha da Gama
Imagem do Boletim NOPH-23 pág. 5, outubro/1985.
Imagem do Boletim NOPH-23 pág. 5, outubro/1985.
Também vamos encontrar
outras referências escritas a respeito do nome do bairro na obra rara
intitulada "História da Imperial Fazenda de Santa Cruz", de autoria
de José de Saldanha da Gama, publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro no tomo 38 da sua Revista, do quarto trimestre de 1860. Saldanha da
Gama, que foi um dos superintendentes da fazenda, lembra que os jesuítas
colocaram uma grande cruz de madeira, pintada de preto, encaixada em uma base
de pedra sustentada por um pilar de granito. Mais tarde, já durante o império,
o cruzeiro seria substituído por outro de dimensões menores. Atualmente existe uma cruz
no mesmo local, mas não é mais o antigo cruzeiro histórico, e sim uma réplica
que foi colocada em frente ao prédio do atual Batalhão Escola de Engenharia
Villagran Cabrita, durante o comando do então Coronel Carlos Patrício Freitas
Pereira, neste local funcionou a antiga sede da Fazenda de Santa Cruz. O cruzeiro deu nome à
Santa Cruz, e em volta dele festejava-se, no mês de maio de cada ano, o
"Dia da Sagração de Santa Cruz", com a participação da população
local, inclusive dos escravos. A festa possuía o seu lado sagrado e o seu lado
profano. Havia missas, bênçãos, ladainhas, reza do terço e procissão. À noite,
no grande terreno em frente à igreja dos padres jesuítas, era a vez dos
escravos se divertirem. Como não havia luz elétrica naquela época, eles usavam
lampiões e centenas de archotes espalhados em toda a área. Ali cantavam e
dançavam, comemorando a festa religiosa do dia.
Segundo o autor, Santa
Cruz começou a ser povoada em meados do século XVI. Suas terras faziam parte da
antiga sesmaria de Guaratiba, que foi desmembrada em nome de Martim Afonso de
Souza, no dia 16 de janeiro de 1567, para contemplar Cristóvão Monteiro, que se
fazia merecedor das terras por ter ajudado na fundação da cidade do Rio de
Janeiro, combatendo contra índios e franceses. Cristóvão Monteiro, que mais
tarde seria ouvidor-mor da Câmara do Rio de Janeiro, instala-se na região como
o primeiro proprietário português das terras que se tornariam a Fazenda de
Santa Cruz. Logo mandou construir um engenho e uma capela no local conhecido
como "Curral Falso".
Com a morte de Monteiro as
terras são herdadas por dona Marquesa Ferreira, sua viúva e por Catarina
Monteiro, sua filha. Em dezembro de 1589, a parte que coube à dona Marquesa
passa a pertencer aos jesuítas mediante doação, como esmola aos padres de Santo
Inácio, com um pedido especial de intercessão pelas almas do finado Cristóvão e
da própria dona Marquesa. No ano seguinte, 1590, os padres conseguiram obter a
parte de Catarina Monteiro, trocando por outras propriedades em Bertioga, no
caminho de São Vicente, São Paulo. Este foi o início do povoamento de Santa
Cruz, que começou com Cristóvão Monteiro e foi se consolidando com a efetiva
ocupação do território pelos padres jesuítas, que expandiram a área da sesmaria
adquirindo terras vizinhas até alcançar dez léguas quadradas. A fazenda ia de
Sepetiba até Vassouras, alcançando também o atual Município de Itaguai.
Em 1860, conforme foi dito
anteriormente, José de Saldanha da Gama, que se destacaria como um dos
superintendentes da Fazenda de Santa Cruz e membro atuante do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, escreveu a história daquela que foi um dos
maiores latifúndios do país e que irá servir de inspiração para todos aqueles
que forem escrever sobre a história do lugar, conforme ele mesmo diz em sua
obra:
“Com a experiência colhida
nos dois anos e nove meses em que exercemos o cargo de superintendente da
Fazenda de Santa Cruz, julgamo-nos habilitados para reunir aqui os melhores
elementos que mais tarde servirão até para uma história desenvolvida; o que por
certo não será despido de interesse no grêmio desta sociedade a que temos a
honra de pertencer”.
Dizer em que consistiu a
primitiva grandeza da Fazenda de Santa Cruz, e qual foi a sua origem; rememorar
em um quadro, senão completo, ao menos exato, os principais fatos que se
passaram em mais de um século, acompanhados de documentos antigos do mais
subido valor para a história; descrever tudo quanto pesquisamos, ou seja na
natureza, ou seja nos numerosos escritos compulsados nas horas silenciosas de
Santa Cruz, tal é o pensamento cardeal destas páginas que nos foram inspiradas,
não pelo turbilhão e burburinho das festividades, mas pelos momentos poéticos e
por assim dizer eloquentes da vida de um solitário. Podemos perceber que esta
história irá abranger um período de mais de cem anos e terá como ponto de
partida as circunstâncias que levaram ao estabelecimento dos padres jesuítas em
Santa Cruz, o tratamento dado aos escravos da fazenda, a criação de gado, etc.
Os principais aspectos que
podemos destacar nesses dois trabalhos são as datas de publicação bastante
antigas, a importância dos seus autores e o valor que eles atribuem a Santa
Cruz como um elemento integrador com a cidade do Rio de Janeiro, prevendo em
alguns casos, um futuro grandioso para a fazenda.
Percebemos que, a história
de Santa Cruz nos apresenta uma rica trajetória e um imenso quadro
historiográfico. O número de trabalhos escritos sobre a região é bastante
expressivo. Mais de 60% da produção escrita é constituída de livros e artigos
de jornais, cujo potencial explicativo é bastante satisfatório. Na maioria das
vezes compõem-se de antigos registros e os mais bem elaborados apresentam um
bom nível de questionamento.
São trabalhos que propõem
uma ampla visão, objetivando traçar um quadro geral da história da Fazenda de
Santa Cruz e o seu relacionamento com a cidade. Constituem-se em material de
excelente qualidade e os mais recentes são baseados numa farta pesquisa
documental.
Apresentam-se como
importantes instrumentos do conhecimento histórico e da realidade local, com
profundo grau explicativo, grande interesse pelo questionamento socioeconômico,
e ainda pela articulação com os níveis local, regional e nacional. Tais estudos
influenciaram de maneira fundamental a produção historiográfica atual e
serviram de base às sínteses históricas que formam as publicações oficiais e os
poucos trabalhos didáticos existentes, além de pesquisas escolares.
De qualquer forma esta
herança historiográfica deve ser valorizada e reexaminada, pois, a
homogeneidade com que apresenta as características acima mencionadas demonstra
o grau de consciência histórica que a comunidade possui, principalmente
naqueles indivíduos oriundos das famílias tradicionais e mais cultas do lugar.
Por outro lado, mesmo que alguns desses trabalhos possam ser considerados de
pouca importância, muitos deles apontam caminhos fundamentais para o
conhecimento histórico.
1. Sobre a bibliografia de Cauto Reis ver o NOPH-27, de fevereiro de 1986, p. 17: "Couto Reis, apontamentos para sua biografia", artigo escrito pelo professor Sinvaldo do Nascimento Souza.
2. Ver o artigo "Ponte dos jesuítas é entregue em clima de testa", NOPH-26, janeiro de 1986, página 9. Também escrito pelo eminente professor.
Caro Professor Adinalzir,
ResponderExcluirO meu nome é José da Marta e estou a escrever esta mensagem na tentativa de conseguir o seguinte:
Sou um investigador amador com obra publicada, no entanto deparei-me com a dificuldade de encontrar uma versão on-line da obra do Benedicto Freitas sobre a Fazenda de Santa Cruz, nomeadamente o Vol II.
Pode ajudar-me?
Cumprimentos,
José da Marta
Prezado José da Marta
ResponderExcluirAgradeço o seu comentário e seu interesse pela obra do escritor Benedicto de Freitas. Pelo que sei não existe uma versão online da obra do autor. Seus livros são considerados raros e só encontrados em livrarias online especializadas e a preços muito altos. Mas posso te indicar um local onde você ainda poderá encontrar alguns exemplares da sua obra a preços populares. Acesse os links:
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Espero ter ajudado. Com os votos de um Feliz Natal.
Abraços!